Há
circunstância que em concreto que afastam a culpa do agente, isto é, fazem com
que o agente não seja objecto do juízo de culpabilidade quando seria
normalmente se essas circunstâncias não tivessem ocorrido.
A
conduta potencialmente ilícita pode efectivamente acabar por revelar-se lícita.
É o que sucederá sempre que os pressupostos de uma determinada causa de
justificação da conduta estejam preenchidos. Assim, ainda que um comportamento
apresente características para ser considerado ilícito, não o é
necessariamente, pois pode suceder que haja uma razão legítima para o agente
ter conduzido a sua conduta da maneira como conduziu.[1]
Existem,
desde logo, duas causas gerais que afastam a ilicitude: o regular exercício de
um direito e o cumprimento de um dever jurídico.[2]
Por
outro lado, podemos ter outras causas que não se consubstanciam no exercício de
um direito subjectivo, e são elas a acção directa, a legítima defesa, o estado
de necessidade e o consentimento do lesado.
1.
Exercício
de um direito ou cumprimentos de um dever
Em
primeiro lugar, como já se disse, o facto danoso não é ilícito quando praticado
no regular exercício de um direito ou no cumprimento de um dever jurídico.
Aqui,
importa atender ao disciplinado no art. 335.º do CC. Segundo este preceito
“havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares
ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito,
sem maior detrimento para qualquer das partes” (n.º 1) e “se os direitos forem
desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”
(n.º 2).
Em
suma, “o agente apenas se exonerará de responsabilidade se se limitar a
desfrutar das utilidades que correspondem ao exercício legítimo do seu direito,
não deixando de responder, verificados os demais pressupostos da responsabilidade,
por outros danos que provoque com a sua atuação”.[3]
De
igual modo, também não haverá, em princípio, responsabilidade dos que atuam no
cumprimento de um dever jurídico. Perante uma situação de colisão de
deveres que recaiam sobre a mesma
pessoa, caberá a esta dar prevalência ao mais importante, o que fará atendendo
ao valor do bem ou interesse que visa prosseguir ou proteger. No entanto, é
certo que a invocação do cumprimento de um dever só relevará se a pessoa em
causa não tiver contribuído culposamente para a impossibilidade de satisfação
de ambos os deveres.
2. Acção
Directa
A
acção directa consiste no recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o
próprio direito e está regulada no artigo 336º do Código Civil. O n.º 2 deste
preceito indica, a título exemplificativo, que a “a acção directa pode
consistir na apropriação, destruição ou deterioração de uma coisa, na
eliminação da resistência irregularmente oposta ao exercício do direito, ou
noutro acto análogo”. Na acção directa, trata-se de realizar ou assegurar um
direito próprio e não de terceiro.
Conforme
o disposto no artigo 336º, nº1 e 3, a licitude da acção directa depende de
quatro pressupostos:
1.
Quando
se trate de realizar ou assegurar um direito próprio;
2.
Haja
impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais;
3.
O
agente não exceda o estritamente necessário para impedir o prejuízo;
4.
Não
se sacrifiquem interesses superiores aos que se visam defender.
A
acção directa subentende a ulterior necessidade de o agente regularizar a
situação através do recurso aos meios coercivos normais, e deverá fazê-lo logo
que seja possível. Mas, se o titular do direito proceder na convicção errónea
de que se verificam os pressupostos justificativos da acção directa, continua a
ser ilícita mas define-se como acção directa putativa. No entanto, se este erro
for desculpável, o agente não é obrigado a indemnizar os prejuízos causados –
artigo 338º.
3. Legítima
Defesa
A
legítima defesa é realizada pelo próprio titular de um direito, ou por
terceiro, contra uma agressão actual e ilícita a esse direito, quando não for
possível, em tempo útil, o recurso à autoridade pública. O artigo 337º do
Código Civil trata esta matéria e estabelece alguns requisitos:
1.
Agressão
actual e ilícita;
2.
Impossibilidade
de o defendente recorrer aos meios normais para afastar a agressão;
3.
O
prejuízo causado pelo ato não ser manifestamente superior ao que pode resultar
da agressão. Relativamente ao último requisito – o prejuízo não ser
manifestamente superior ao que pode resultar da agressão – assinala-se uma
diferença em confronto com a acção directa: na legítima defesa, pode haver
desproporção entre os prejuízos, desde que não seja manifesta. Compreende-se
que assim seja pela dificuldade normal do agente avaliar com rigor os prejuízos
possíveis resultantes da agressão. No entanto, considera-se justificado o
excesso de legítima defesa, sempre que devido a perturbação ou medo não censurável
do agente (artigo 337º/2) – verificando-se, ainda, a isenção de
responsabilidade civil. A defesa excessiva pode resultar de os meios utilizados
serem mais graves que os necessários para afastar a agressão.
Prevê-se,
ainda, a hipótese de erro acerca da existência dos pressupostos de legítima
defesa – legítima defesa putativa.
4.
Estado
de necessidade
Conforme
o art. 339.º do CC, “é lícita a acção daquele que destruir ou danificar coisa
alheia com o fim de remover o perigo actual de um dano manifestamente superior,
quer do agente, quer de terceiro”. Nisto consiste o chamado estado de
necessidade. Atendendo à letra da lei, parece que o preceito apenas admite o
sacrifício de coisas ou direitos patrimoniais alheios, através do acto menos
prejudicial do seu simples uso.
O
estado de necessidade como causa justificativa do facto danoso deve reunir os
seguintes requisitos: a) existência de um perigo actual; b) esse perigo deve
ameaçar um direito ou bem jurídico relativo à pessoa ou ao património do agente
ou de terceiro; c) a conduta do agente deve constituir meio necessário para
preservar o direito ou bem jurídico em causa; d) os interesses defendidos devem
ser manifestamente superiores aos sacrificados. No estado de necessidade,
salvaguarda-se um bem jurídico através da lesão de interesses de terceiro que
nada contribuiu para a situação de perigo. Ao passo que, na legítima defesa,
reage-se contra quem criou a situação de perigo.[4]
O
estado de necessidade é subsidiário em relação à legítima defesa, na medida em
que o agente só deverá sacrificar a esfera jurídica de terceiro quando não
possa fazê-lo à custa da esfera jurídica do agressor.
5. Consentimento
do Lesado
Nos
termos do artigo 340º/1 e 2, o acto lesivo dos direitos de outrem é lícito,
desde que o ofendido consinta na lesão. No entanto, o consentimento do lesado
não exclui a ilicitude quando é contrário a uma proibição legal ou aos bons
costumes.
O
direito protege a esfera jurídica dos particulares através da ilicitude,
contudo, se houver autorização do respectivo titular, essa lesão torna-se
lícita. Desaparece, desta forma, o motivo da indemnização ou reparação em que
se traduz a responsabilidade civil. O consentimento do ofendido deve anteceder
o acto, visto que, após a prática este, apenas pode verificar-se uma renúncia
aos efeitos da ilicitude da lesão.[5]
Neste âmbito, existe uma presunção de consentimento. Admite-se o consentimento
desde que, de acordo com um critério objectivo, seja presumível que o titular
do interesse lesado tivesse permitido o ato lesivo – artigo 340º/3. Se, porém,
o agente souber que o titular do bem se teria manifestado em sentido diverso,
deve prevalecer este último critério subjectivo. Escusado será dizer que,
evidentemente, este problema não se coloca quando o lesado exteriorizou a sua
vontade.
[1] GONZÁLEZ, José
Alberto, Responsabilidade…, pp. 141 e 142.
[2] COSTA, Mário
Júlio de Almeida, op. cit., p. 567.
[3] LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, op. cit.,
p. 306, apud Gonçalves Liliane, Da indemnização do dano da privação do
uso de veículo decorrente de acidente de viação, 2014: 27 ss.
[4] Gonçalves Liliane, Da indemnização do dano da privação do uso
de veículo decorrente de acidente de viação, 2014: 31.
[5] ae.fd.unl.
Responsabilidade Civil, Linha de sabentas.
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