Introdução
1.
Noção e aspectos gerais
O contrato de
compra e venda é aquele que desempenha maior e mais importante função
económica.
Encontra-se
deferido nos arts. 874º segs. CC, aplicando-se além das suas regras próprias,
os princípios e preceitos comuns a todos os contratos.
A partir da
definição do art. 874º CC, é possível identificar com clareza os seguintes
efeitos essenciais da compra e venda enumerados no art. 879º CC:
-
Um
efeito real – a transferência da titularidade de um direito;
-
Dois
efeitos obrigacionais:
a)
A
obrigação recai sobre o vendedor de entregar a coisa vendida;
b)
A
obrigação para o comprador de pagar o correlativo preço.
Há na compra
e venda, a transmissão correspectiva de duas prestações: por um lado, a
transmissão do direito de propriedade ou de outro direito; por outro lado, o
pagamento do preço.
Do teor do
art. 874º CC, resulta claramente a atribuição de natureza real, e não apenas
obrigacional ao contrato de compra e venda o que resulta também do art. 879º-a
CC (vide arts. 578º/1, 408º/1 – 1317º-a CC) trata-se de uma concepção
tradicional, segundo a qual a transmissão da coisa tem por causa o próprio contrato,
embora, por circunstâncias várias, o objecto possa ficar dependente de
determinação, quando se trate de coisa futura, ou haja reserva de propriedade
(art. 409º CC). O que não pode é estabelecer-se que a transferência do direito
fique dependente de nova convenção, sem se desfigurar, com isso, a natureza do
primeiro contrato.
Esta função
translativa ou real do contrato não impede que dele nasçam também obrigações a
cargo do vendedor e do comprador.
Da definição
dada pelo art. 874º CC, resultam características fundamentais da compra e
venda, que é um contrato oneroso (art. 612º CC), bilateral (arts.
428º segs. CC), com prestações recíprocas (art. 424º CC) e dotado de
eficácia real ou translativa.
2.
Forma do contrato de compra e venda
Via de regra
os contratos celebrados pelos particulares são consensuais. Formam-se mediante
o simples acordo dos contraentes.
A esta regra
não faz excepção a compra e venda. Ela pode ser celebrada através de qualquer
das formas admitidas por lei, para a declaração negocial (arts. 217º a 220º
CC). Apenas nalguns casos foram estabelecidas certas exigências de forma (art.
875º CC).
Contrato de
compra e venda de bens imóveis está sujeito a registo, dependendo deste a sua
eficácia em relação a terceiros.
Do registo
deve ainda constar a cláusula de reserva de propriedade, quando a alienação
respeite a coisa imóvel ou móvel sujeita a registo (art. 409º/2 CC), bem como a
cláusula para pessoa a nomear, nas mesmas condições (art. 456º CC).
A exigência
da escritura pública vale não só para a transmissão da propriedade, mas também
para a transmissão ou constituição de qualquer outro direito sobre imóveis a
que se refere o art. 204º/1-a), b), c) CC.
Do disposto
no art. 875º CC resulta:
a) Que o contrato é nulo se for celebrado sem forma nele
consignada;
b) Que o contrato só poderá considerar-se celebrado, quando a
transmissão da propriedade se operar, depois de lavrado o respectivo título.
Efeitos
essenciais
3.
O efeito real
Distinguem-se
tradicionalmente dois tipos de venda: a venda obrigatória e a venda real.
Nos
ordenamentos que conferem simples carácter obrigatório à compra e
venda entre vendedor e comprador apenas se criam e produzem relações de
crédito. Cada um dos contraentes apenas têm direito a exigir do outro uma
prestação:
·
Ao
vendedor cabe o direito de exigir do comprador o preço;
·
Ao
comprador cabe o direito de reclamar a transmissão ou alienação do objecto
vendido.
Nos arts.
408º, 874º, 879º-c CC, decorre a eficácia real. Os arts. 874º e 879º-c CC,
referem-se especificamente à compra e venda, o art. 408º CC, consagra em termos
gerais a eficácia real dos contratos.
No nosso
direito, o contrato de compra e venda como contrato de alienação de coisa
determinada (art. 408º/1 CC) reveste natureza real. A transmissão da
propriedade da coisa vendida, ou a transmissão do direito alienado, tem como
causa o próprio contrato, embora esses efeitos possam ficar dependentes de um
facto futuro. Algumas situações estão previstas no art. 408º/2 CC, referindo-se
o art. 409º CC[1][1], à reserva
de propriedade, que é uma outra hipótese em que a transmissão, tendo embora por
causa a compra e venda se protela para um momento posterior. Quem compra uma
coisa sujeita ao direito de preferência fica, enquanto não decorrer o prazo de
exercício desse direito, em situação análoga à de quem contrata sob condição
resolutiva.
Os arts. 874º
e 879º CC, incluem entre os efeitos da compra e venda a transmissão da
propriedade de uma coisa ou doutro direito.
Consegue-se
conciliar o art. 408º/1 CC, com a afirmação categórica do art. 879º-a CC, no
sentido da transmissão da titularidade da coisa constituir efeito essencial da
compra e venda.
Desta forma,
também consegue-se harmonizar o art. 408º/1 CC, com o disposto no n.º 2 do art.
408º CC. Aí o legislador especificou o momento da transferência de certas
coisas com características especiais, sempre com a preocupação de não
estabelecer qualquer ligação genética entre a transmissão de uma coisa ou a
titularidade de um direito e os factos que marcam o momento dessa transmissão.
Ao lado da
sua natureza real, a compra e venda tem também natureza obrigatória ou
obrigacional. O vendedor, por um lado, fica obrigado a entregar a coisa (art.
879º-b CC) e o comprador, por outro lado, a pagar o preço (art. 879º-c CC). A
transmissão da propriedade não fica, porém, dependente do cumprimento destas
obrigações, embora, em alguns casos, o não cumprimento possa dar lugar à
possibilidade de resolução do contrato.
Enumeram-se
no art. 879º CC, apenas os efeitos essenciais da compra e venda,
depois que no art. 874º CC se definiu através da causa negotti, a função
económico-social típica da compra e venda. Note-se porém, que a obrigação de
entrega nem sempre existe, como sucede, quer nos casos em que a coisa transferida
já se encontra na posse do comprador, quer naqueles em que a transferência não
tem por objecto direitos reais, mas direitos de crédito, por exemplo.
A compra e
venda tem sempre carácter real. Um contrato do qual não decorra a transmissão
da titularidade de uma coisa ou direito não poderá nunca qualificar-se como
compra e venda, mesmo quando reunidos os demais requisitos e efeitos deste
contrato.
4.
Os efeitos obrigacionais
O dever de entrega da coisa
Trata-se da
transferência da titularidade da coisa ou do direito vendido. Além desse
direito real a compra e venda produz dois outros efeitos essenciais, de
carácter obrigacional:
1)
A
obrigação que recai sobre o vendedor de entregar a coisa;
2)
A
obrigação que impende sobre o comprador de pagar o correlativo preço.
O Código
Civil contém um artigo relativo à obrigação de entrega da coisa – o art. 882º
CC.
A obrigação
por parte do vendedor de entregar a coisa, está expressa no art. 879º-b CC,
importa para o vendedor o dever de investir o comprador na posse efectiva dos
direitos transmitidos para que o adquirente os possa fruir plenamente (arts.
1263º-b; 1264º CC). A obrigação de entrega é normalmente contemporânea da
transmissão do direito ou posterior a ela; mas pode, excepcionalmente, ser
anterior, como na venda com reserva de propriedade (art. 409º CC).
O art. 882º/1
CC, procura resolver os problemas do deferimento ou protelar no tempo da
obrigação de entrega da coisa. É que, não sendo entregue no momento da
celebração do contrato o seu estado pode variar até à altura da respectiva
entrega.
Decorre do
art. 882º/1 CC que:
a)
Se
a coisa adquirir vícios ou perder qualidades entre o momento da venda e o da
entrega, são aplicáveis as regras relativas ao não cumprimento das obrigações
(art. 790º CC);
b)
O
vendedor tem obrigação
de guardar a coisa, o que implica o dever de abstenção de tudo o que é
inconciliável com a prestação.
A obrigação
de entregar a coisa no estado em que se encontrava no tempo da venda envolve,
implicitamente, a obrigação de guardar a coisa que neste caso aparece como
obrigação instrumental e não como obrigação fundamental ou autónoma[2][2]. Este dever
de custódia do vendedor tem se ser cumprido com o mesmo grau de diligência,
quer a entrega se faça dentro do prazo convencionado, quer se faça
posteriormente, ainda que a solicitação do comprador que não tenha
possibilidade, se não mais tarde, de levantar ou r etirar a coisa.
No art.
882º/2 CC, o legislador procurou fixar no âmbito da obrigação de entrega; por
força deste preceito essa obrigação abrange, salvo estipulações em contrário as
partes integrantes, os frutos pendentes e os documentos relativos à coisa ou
direito vendido.
Extraem-se as
seguintes conclusões do art. 882º/2 CC:
-
O
momento relevante para a fixação do âmbito da obrigação é o correspondente à
data de venda;
-
Deste
modo, abrangido pela obrigação de entrega são apenas as partes integrantes ou
frutos pendentes ao termo da venda;
-
Excluem-se
as partes integrantes ligadas à coisa em momento ulterior ao da venda. O mesmo
vale para os frutos produzidos depois desta data.
5.
O dever de pagar o preço
Preço é por
definição a expressão do valor em dinheiro, ou, “a medida de valor expressa,
típica e exclusivamente em dinheiro”. Isto não basta, obviamente, a que o
comprador, com o acordo do vendedor, pague em bens diferentes de dinheiro.
O modo de
realização do pagamento cabe no âmbito da autonomia da vontade das partes.
De acordo com
as regras do art. 883º CC, relevará em primeiro lugar o preço fixado por
entidade pública, na falta dele recorre-se sucessivamente:
-
Ao
preço normalmente praticado pelo vendedor à data da conclusão do contrato;
-
Ao
preço do mercado ou bolsa no momento do contrato e no lugar em que o comprador
deve cumprir;
-
Ao
tribunal.
Uma vez
fixado o preço importa apurar qual o lugar do seu pagamento (art. 885º CC).
Se a venda
ficar, por força do art. 292º CC, ou qualquer outro preceito legal limitada a
parte do seu objecto, o preço respeitante à parte válida do contrato será o que
neste figurar, se houver sido descriminado como parcela do preço global (art.
884º/1 CC).
Modalidades
6.
Venda com reserva de propriedade
O art. 409º/1
CC, permite porém, ao vendedor reservar para si a propriedade da coisa até ao
cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até a verificação
de qualquer outro evento.
Com este
artigo (art. 409º CC) pretende-se que o credor do preço fique numa situação
privilegiada. Se não houvesse a reserva, no caso de não pagamento, o devedor
poderia apenas executar o património do comprador tendo de suportar na execução
a concorrência dos outros credores.
É nula a
cláusula de reserva de propriedade de uma coisa que se vai tomar parte
constitutiva de outra coisa.
A venda com
reserva de propriedade é uma alienação sob condição suspensiva; suspende-se o
efeito translativo mas os outros efeitos do negócio produzem-se imediatamente.
O evento futuro de que depende a transferência da propriedade será em regra, o
cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte.
O princípio
de que a transferência da propriedade da coisa vendida e determinada se opera
por mero efeito do contrato pode ser afastada por vontade das partes mediante o
pacto de reserva de domínio previsto no art. 409º CC. A convenção de que a
coisa vendida deveria ser segurada a favor do vendedor até completa liquidação
do preço e a de que só após o integral pagamento do peão seria a coisa
registada em nome dos compradores não revelam inequivocamente que as partes
tenham estipulado uma cláusula de reserva de propriedade para o vendedor até
àquele pagamento integral.
No tocante à
forma, a cláusula de reserva de propriedade está sujeita às mesmas formalidades
que o contrato no qual se acha inserida.
Assim, se o
contrato de compra e venda respeitar a coisa imóvel ou móvel sujeita a registo,
a cláusula de reserva de propriedade só será oponível a terceiros se estiver
registada.
7.
Venda a retro
O vendedor
reserva para si o direito de reaver a propriedade da coisa ou direito vendido
mediante a restituição do preço. Na venda a retro o vendedor tem a
possibilidade de resolver o contrato de compra e venda (art. 927º CC).
O exercício
deste direito do vendedor tem como consequência a aplicação do disposto nos
arts. 432º segs. CC, em tudo quanto não for afastado pelo regime específico da
venda a retro.
O art. 928º/2
CC, proíbe o comprador de exigir o reembolso de uma quantia superior à paga por
ele próprio. No excesso é que poderiam ocultar-se juros usurários, deste modo
proibidos.
A existência
de um prazo imperativo (art. 929º CC[3][3]) para o
exercício do direito de resolução não impede as partes de, dentro desse prazo
resolutivo, fixarem um prazo suspensivo, de modo apenas permitir a resolução do
contrato decorrido certo período.
Em regra a
resolução dos contratos ou negócios jurídicos não prejudica os direitos
adquiridos por terceiros (art. 435º/1 CC).
8.
Venda a prestações
Como forma de
tornar mais activa a circulação de bens e de permitir o gozo dos benefícios por
eles proporcionados ao maior número possível de pessoas o nosso legislador
consagrou a venda a prestações – arts. 934º segs. CC.
O princípio
geral regulador das dívidas cuja liquidação pode ser fraccionada consta do art.
781º CC. Por força deste preceito, se uma obrigação puder ser liquidada em duas
ou mais prestações, a não realização de uma delas importa o vencimento de
todas. Existem porem regras especiais na compra e venda. Trata-se dos arts.
886º, 934º e 935º CC. O art. 886º CC, aplica-se de uma forma geral a todos os
casos de não pagamento de preço pelo comprador e estabelece que, transmitida a
propriedade da coisa, e feita a sua entrega, o vendedor não pode via de regra,
resolver o contrato por falta de pagamento. O art. 934º CC, aplica-se
especificamente aos casos de falta de pagamento de uma das prestações em
contratos de compra e venda a prestações.
As
consequências por falta de pagamento de uma prestação enunciadas no art. 934º
CC, são, resumidas por Baptista Lopes:
c) Se não tiver
havido reserva de propriedade, transmitida a propriedade da coisa, ou o direito
sobre ela, e feita a entrega, o vendedor não pode resolver o contrato por falta
de pagamento do preço (art. 886º CC).
Só assim não
será se tiver havido convenção em contrário que, no caso de o comprador não
efectuar o pagamento de algumas prestações do preço, perderá a favor do
vendedor as quantias entregues, ficando este com o direito de reaver a coisa,
objecto do contrato.
d) Se tiver
havido reserva de propriedade, uma vez entregue a coisa vendida ao comprador,
há lugar à resolução do contrato, se não for feito o pagamento de qualquer
prestação, desde que esta exceda 1/8 do preço total (art. 934º CC).
Se a coisa
não for entregue ao comprador, aplicam-se as regras gerais sobre a mora e não
cumprimento das obrigações.
Haverá também
lugar à resolução do contrato se houver falta de pagamento de duas ou mais
prestações que, no seu conjunto, excedem 1/8 do preço total, embora cada de per
si não exceda tal proporção.
e) Quer haja,
quer não haja reserva de propriedade, o comprador, pela falta de pagamento de
uma só prestação que não exceda a oitava parte do preço total, não perde o
benefício do prazo relativamente às prestações seguintes, salvo se houver sido
convencionado o contrário (art. 934º CC).
Também aqui,
a falta de pagamento de duas ou mais prestações que no seu conjunto, excedam
1/8 do preço importa a perda do referido benefício.
O art. 935º
CC, define o regime da cláusula penal no caso de o comprador não cumprir. A
estipulação de uma cláusula penal é admitida para os diversos contratos, e de
forma genérica, no art. 810º CC, como meio de fixação prévio de uma
indemnização pelo não cumprimento de obrigações.
Em princípio,
nos termos do art. 935º/1 CC, não pode a pena ultrapassar metade do preço. O
que pode é estimular-se a ressarcibilidade de todo o prejuízo sofrido, não
funcionando, neste caso, qualquer limite, pois a cláusula deixa de ser usurária.
Se a pena exceder aquele limite é automaticamente reduzida para metade (art.
935º/2 CC).
Perturbações
típicas do contrato de compra e venda
9.
Venda de bens alheios
A
caracterização da venda de bens alheios auxiliam os preceitos dos arts. 893º e
904º CC. Assim, se as partes considerarem o bem objecto da venda como
efectivamente alheio, pode supor-se que o contrato se realizou na perspectiva
de que a coisa viesse a integrar o património do alienante: se assim for,
segue-se o regime da venda de bens futuros (art. 880º CC). Por sua vez, o
alcance do art. 904º CC é o de ressalvar a hipótese do art. 893º CC e,
sobretudo, o de cominar com a nulidade qualquer venda que incida sobre bem de
que ambos os contraentes conheçam a falta de poder de disposição por parte do
alienante. Daqui decorre que o preceituado nos arts. 892º segs. CC pressupõe
sempre a ignorância de uma das partes acerca do carácter alheio da coisa.
O Código
Civil comina com a nulidade, a venda de bens alheios (art. 892º CC). Trata-se de
uma sanção que apenas se refere à relação entre vendedor e comprador. No que
respeita ao verdadeiro titular do bem, a venda é ineficaz.
A nulidade
não se apresenta como decorrência da eficácia real da compra e venda. Na
verdade, esta eficácia limita-se a exprimir a idoneidade da constituição de uma
obrigação de transmitir a cumprir mediante acto posterior, produzindo o efeito
translativo. A compra e venda não postula, pois, no nosso direito, uma
indispensável transmissão da propriedade no momento da conclusão do contrato
como seu requisito de validade.
A venda de
coisa alheia só é nula se o vendedor carecer de legitimidade para a realizar.
Se é um representante[4][4] do
proprietário ou titular do direito, o acto pode ser válido, no caso de o título
ou a lei lhe conferirem poderes para o celebrar e é, geralmente anulável, se o
não puder legalmente realizar.
O regime
geral da nulidade nos negócios jurídicos, prescritos nos arts. 285º segs. CC é
afastado do regime da venda de bens alheios em vários aspectos. À parte da
possibilidade e obrigatoriedade da convalidação do contrato (arts. 895º e 897º
CC), estabelecem-se no art. 892º CC, duas limitações ao princípio geral da
legitimidade expresso no art. 286º CC. Por outro lado, o vendedor não pode opor
a nulidade a comprador de boa fé (não importa que aquele esteja de boa ou má
fé); por outro lado, o comprador que se comportou com dolo (art. 253º CC)
também a não pode opor ao vendedor de boa fé.
A boa fé
nestes casos consiste na ignorância de que a coisa vendida não pertencia ao
vendedor.
O sistema de
inoponibilidades instituído oferece à parte de boa fé o direito de se
prevalecer da eficácia do contrato. Não que lhe confira o direito ao
cumprimento do dever de entrega do preço ou do dever de entrega da coisa, pois
foram precisamente estes deveres que a lei quis impedir que nascessem ao
cominar a nulidade. O alcance da inoponibilidade é outro: conferir à parte de
boa fé determinadas posições apesar da invalidade dos deveres primários de
prestação, as quais teriam de pressupor em princípio a inobservância de deveres
primários de prestação perfeitamente válidos e eficazes.
Como
consequência da sanção da nulidade, deve a coisa ser restituída ao vendedor
pelo comprador, independentemente da boa ou má fé daquele. A correspectiva
obrigação de restituir o preço segue, no entanto, um regime parcialmente
diferente do que resultaria da aplicação do art. 289º CC.
A venda de
bens alheios, sendo nula convalida-se logo que o vendedor adquira a propriedade
do bem vendido. O efeito translativo opera então, embora com eficácia ex
nunc (art. 895º CC). A sanabilidade do vício ex lege funda-se na
vontade presumível do comprador ou vendedor de boa fé, cuja realização deixou
de estar impedida pelo obstáculo da alienidade da coisa. Não há pois intenção
de fazer percludir ao contraente de boa fé a posição decorrente da nulidade do
negócio. Daí, no art. 896º CC, a enumeração de factos impeditivos da
convalidação, cuja ocorrência evidencia a vontade de contraente protegido se
prevalecer da nulidade.
Para além da
previsão desta convalidação ipso facto, a lei impõe ao vendedor a obrigação
de convalidar o contrato em atenção à boa fé do comprador (art. 897º/1 CC).
Trata-se de proteger o interesse de cumprimento do comprador, através da
aquisição, pelo vendedor, da propriedade do bem vendido. Estruturalmente, a
obrigação em causa representa a sobrevivência modificada da obrigação de
garantia da produção do efeito translativo da venda dada pelo vendedor ao
comprador da boa fé. Nestes casos, pode o comprador de boa fé requerer ao
tribunal a fixação de prazo para o cumprimento da obrigação, decorrido o qual o
contrato seja definitivamente havido como nulo (art. 897º/2 CC).
A lei afasta,
a cumulação do pedido indemnizatório pela nulidade da venda como decorrente do
incumprimento da obrigação de convalidar quando estejam em causa prejuízos
comuns (art. 900º/1 CC). E para evitar a duplicação do ressarcimento dos lucros
cessantes nos casos de dolo do vendedor, manda o comprador optar entre a
indemnização dos lucros cessantes pela celebração do contrato nulo e dos lucros
cessantes pela falta ou retardamento da convalidação (art. 900º/2 CC).
A
regulamentação da venda de bens alheios é completada por três preceitos: o art.
901º CC nos termos do qual o vendedor garante solidariamente com o dono do bem
a obrigação que a este incumba de reembolsar o comprador de boa fé das
benfeitorias que ele houver realizado[5][5], o art. 902º
CC que estende com certas adaptações anteriores aos casos em que os bens sejam
apenas parcialmente alheios e o contrato deva valer na parte restante por
aplicação do princípio da redução; e o art. 903º CC que prevê a possibilidade e
as consequências da derrogação convencional dos preceitos relativos À venda de
bens alheios.
10. Venda de bens
onerados
Encontram-se
situações nas quais, apesar de o direito ter sido transferido para o comprador
por efeito da venda, ele não corresponde contudo, na sua configuração concreta
ao interesse do comprador. O vício de direito revela como tal em sede de venda
de bens onerados sempre que se traduza na sujeição deste “a alguns ónus ou
limitações que excedam os limites inerentes aos direitos da mesma categoria”
(art. 905º CC). Cabem no âmbito da venda de bens onerados tanto a constituição
sobre o bem de direitos reais de gozo de natureza controvertida, são no entanto
eficazes em relação ao comprador.
Supõe-se a
existência de encargos ou ónus que incidam sobre o direito transmitido (vícios
de direito) e não a existência de vícios da coisa.
São vícios do
direito um usufruto, uma hipoteca, um privilégio por obrigação anterior que se
venha a executar, um penhor, uma servidão, etc.
Havendo ónus
ou limitações que excedam os limites normais aos direitos de certa categoria, a
venda é anulável por erro (art. 251º CC) ou dolo (art. 254º CC), desde que no
caso de verificarem os requisitos legais da anulabilidade.
Na definição
do regime de tutela do comprador de bem onerado (art. 905º CC) ou defeituoso
(art. 913º CC) há que separar três grupos de hipóteses:
1º Grupo, abrange “aquelas
em que o comprador exprime uma vontade relativa ao dever-ser da coisa, às suas
características e qualidades, que é diversa daquela que teria se não tivesse em
erro quanto às qualidades de que a coisa carece para o fim que tem em vista – erro
sobre os motivos.
2º Grupo, identificada
correctamente a coisa no seu dever-ser, o comprador erra na expressão ou
declaração dessa vontade indicando dada coisa concreta como exemplar portador
daquela característica e qualidades, que afinal se verifica não as ter: há
erro na declaração que, também ele pode ser simples ou qualificado por
dolo do vendedor.
3º Grupo, reentrarão
as hipóteses em que, tendo o comprador formado correctamente a sua vontade
negocial, não há qualquer problema de erro, mas tão-só de incumprimento, ou de
parcial (qualitativamente) ou defeituoso cumprimento.
A venda de
bens onerados é nos termos do art. 905º CC, anulável a requerimento do
comprador, sempre que este tenha agido com desconhecimento da limitação do
direito. Conforme o teor do preceito indicia-se, quis-se reconduzir a tutela do
comprador à doutrina geral do erro (e do dolo) num desvio às opções quanto à
venda de bens alheios. O direito de anulação em causa só se verifica se
estiverem presentes os requisitos legais da anulabilidade, isto é, se o erro
for essencial e se a essencialidade for recognoscível pelo vendedor (art. 247º
CC). Trata-se de factos constitutivos do direito, cuja prova compete, segundo
as regras gerais, ao comprador (errante).
Em
consequência com o lugar paralelo do art. 895º CC, o legislador previu
explicitamente no art. 906º CC que a sanação do vício que atinge o contrato se
dê por mero efeito do desaparecimento, por qualquer modo, dos ónus ou
limitações a que o direito estava sujeito, a menos que o ónus ou as limitações
tenham produzido já prejuízo ao comprador, presumindo-se então que a anulação é
do interesse do comprador, e ainda, naturalmente, quando a acção de anulação
tenha sido já interposta em juízo (art. 906º/2 CC). Tal como se afirmou quanto
à venda de bens alheios, o convalescimento visa beneficiar o comprador e não
cercear os seus meios de defesa.
Para além
desta sanação automática (com eficácia ex nunc), o art. 907º CC impõe ao
vendedor a obrigação de expurgar o direito dos ónus ou limitações existentes,
podendo-lhe ser fixado um prazo para o efeito (a doutrina paralela do art. 897º
CC[6][6]). Trata-se
aqui de proteger o interesse do comprador na aquisição de um direito livre de
limitações (interesse de cumprimento).
O regime
legal da venda de bens onerados balança aparentemente entre dois pólos
incompatíveis. Há, no fundo, que reinterpretar à luz das considerações
precedentes, e dizer assim que ele regulamenta essencialmente uma perturbação
do programa obrigacional estabelecido pelo contrato. As declarações das partes
são de interpretar no sentido de que se quis transmitir (adquirir) um direito
livre de ónus ou de limitações anormais. Desta forma, o art. 905º CC na sua
primeira parte, funciona como regra materialmente interpretativa que
desonera o comprador da prova daquele sentida das obrigações negociais. O
direito transferido por efeito do contrato na reveste, na medida dos ónus ou
limitações apontadas, as características que o pacto lhe assinalou. Há
incumprimento, mais exactamente, cumprimento defeituoso, e os meios de tutela
do comprador são fundados no contrato, como remédios contra o rompimento do
projecto contratual que se estabelecera. Para as fazer valer, o adquirente só
terá, em regra, que fazer a prova da deficiência do direito transmitido,
cabendo à contraparte a demonstração de que ele conhecia de antemão o vício do
direito.
11. Venda de
coisas defeituosas
Os vícios da
coisa vendida são, em princípio, equiparados pelo art. 913º CC, aos vícios de
direito, sendo-lhes aplicáveis as mesmas disposições devidamente adaptadas, em
tudo quanto não seja modificativo pelas disposições seguintes.
Dir-se-ia
assim, que, por força do art. 905º CC, os vícios da coisa não constituem
fundamento autónomo da anulação integrando-se nos regimes do erro e do dolo.
O art. 913º
CC, cria um regime especial para as quatro categorias de vícios que nele são
destacadas:
f) Vícios que desvalorize a coisa;
g) Vícios que impeça a realização do fim a que ela é
destinada;
h) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor;
i) Falta das qualidades necessárias para a realização do
fim a coisa se destina.
De notar, a
propósito ainda do âmbito previsto do art. 913º CC que aparecem aí parificados
os casos em que o vendedor assegurou certas qualidades da coisa ao
comprador, e as hipóteses em que, falando embora qualquer declaração desse
género, a coisa apresentava vícios ou falta de qualidades. Parece, no entanto,
justo, admitir-se uma maior severidade de regime para o vendedor do primeiro
grupo de situações. A prática negocial conhece, na verdade, hipóteses em que o
vendedor por isso que garantiu ao adquirente certas qualidades da coisa, deve
responder objectivamente pela sua ausência.
Como
disposição interpretativa manda o n.º 2 do art. 913º CC atender, parta a
determinação do fim da coisa vendida, à função normal das coisas da mesma
categoria.
O regime da
venda de coisas defeituosos visa essencialmente definir os termos e a medida em
que o comprador pode alijar de si o risco do desvalor da coisa que lhe exclui
ou diminui a utilizabilidade. Os arts. 913º segs. CC não se aplicam pois
automaticamente àquelas situações em que estão em causa danos ulteriores
causados pelo defeito de que o bem padecia. O tratamento destas espécies
gravita, segundo os autores, em torno de três orientações. A primeira propende
para a aplicação das regras comuns do cumprimento defeituoso. Outra mais
recente, enquadra estes casos na responsabilidade aquiliana (arts. 483º segs.
CC), por considerar que os danos subsequentes não estão incluídos no perímetro
do contrato. Finalmente, a última advoga que sobre o vendedor impendem
determinados “deveres de protecção”, de origem não-negocial, destinados
a proteger o património ou a saúde do comprador na medida em que possam ser
afectados pelo contrato, e por cuja violação o vendedor responde nos moldes da
responsabilidade contratual.
Os efeitos da
venda de coisa defeituosa obtêm-se por remissão para o disposto da venda de
bens onerados, na medida em que este último regime seja compatível com os
preceitos nos arts. 914º a 922º CC (art. 913º CC). Por isso nos aproveitam
nesta sede as considerações já feitas aquando do estudo daquele outro regime
O comprador
tem antes de mais o direito de anular o contrato (art. 905º CC ex vi do
art. 913º CC). Consegue assim reaver o preço pago pela coisa, libertando-se de
ter de suportar a não conformidade daquela com o seu interesse.
Se tiver
havido dolo do vendedor, a acção de anulação deverá ser proposta no prazo de
uma não ao contar do momento em que cessou o vício, mas poderá sê-lo a todo o
momento, enquanto o negócio não tiver sido cumprido (art. 287º/1 e 2 CC).
Não havendo
dolo, mas simples erro, o comprador terá de denunciar ao vendedor o defeito no
prazo de trinta dias a contar do seu conhecimento e dentro de seus meses após a
entrega da coisa; e poderá intentar a acção de anulação competente até seis
meses após a denúncia, embora a todo o tempo enquanto o negócio não tiver sido
cumprido (art. 916º e 917º CC). A não observância destes requisitos implica a
caducidade do direito.
O comprador
tem também o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for
necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela. Trata-se de um
meio de defesa baseado no contrato e destinado à correcção de uma prestação
inexacta em face de conteúdo contratual. Por isso, e porque já se está fora do
que se encontra especificamente disposto quanto à acção redibitória, ao
comprador basta-lhe provar a deficiência da coisa e será o vendedor quem, sendo
caso disso, terá de alegar e demonstrar que o adquirente conhecia o defeito da
coisa. Por outras palavras: exceptuando o caso particular do art. 905º CC (ex
vi do art. 913º CC), o erro do comprador não é facto constitutivo dos
direitos que a lei lhe confere e que a ele caiba provar; é a sua ausência a que
preclude esses direitos, pelo que, como facto impeditivo, o ónus da sua prova
recai sobre o alienante.
Diz a lei que
o vendedor não tem, contudo, que proceder à reparação ou substituição da coisa
se desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que ela padecia.
Ele fica pois eximido dessa obrigação, suplementar relativamente aos seus
planos iniciais, em atenção à lisura e não-censurabilidade da sua conduta.
O direito de
anular o contrato podem ir unidas pretensões indemnizatórias. Se o vendedor
agiu com dolo, indemniza o interesse contratual negativo (art. 908º ex vido
art. 913º CC). Se houve erro simples do comparador, há também em princípio de
indemnização nos termos do art. 909º CC a menos, agora que o vendedor ilida a
presunção de culpa que sobre ele impende (art. 909º CC ex vi do art.
915º, art. 799º/1 CC).
Os
pressupostos fundamentais do regime especial consagrado nos arts. 913º segs.
CC, assentam mais nas notas objectivas das situações por ela abrangidas do que
na situação subjectiva do erro em que, alguns casos, se encontre o comprador,
ao contrário do regime da anulação do contrato, também aplicável ao caso com
algumas adaptações, que repousa essencialmente na situação subjectiva do
comprador e no reconhecimento, por parte do vendedor, da essencialidade do
elemento ou atributo da coisa sobre o qual o erro incidiu.
Observe-se
que o regime estabelecido nos arts. 913º segs. CC, se refere apenas às cosias
defeituosas (às coisas com defeito) e que, entre os defeitos da coisa, se
aplica somente aos defeitos essenciais, seja porque a desvalorizam na sua
afectação normal, seja porque a privam das qualidades asseguradas pelo
vendedor.
O comprador
tem o direito de anular o contrato (art. 905º - art. 913º CC). Consegue-se
assim reaver o preço pago pela coisa libertando-se de ter de suportar a não
conformidade daquela com o seu interesse.
O comprador
tem também o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa, ou, se for
necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela.
O vendedor
não tem, contudo que proceder à reparação ou substituição da coisa se
desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que ela padecia.
Do art. 913º
CC resulta:
a)
Se
a coisa ou o direito tiverem alguns vícios referidos no art. 913º CC, que excedam
os limites normais, o contrato é anulável por erro ou dolo desde que no caso se
verifiquem os requisitos da anulabilidade só ao comprador sendo lícito pedir a
anulação;
b)
Desaparecidos
os vícios da coisa, fica sanada a anulabilidade do contrato, quer persistirá se
a existência dos vícios já houver causado prejuízo ao comprador, ou se este
tiver já pedido a anulação da compra e venda;
c)
Em
caso de dolo, o vendedor, anulado o contrato, deve indemnizar o comprador do
prejuízo que este não sofria se a compra e venda não tivesse sido celebrada;
d)
Se
o vendedor se constituir em responsabilidade por não sanar a anulabilidade do
contrato, a correspondente indemnização acresce àquela a que o comprador trem
direito por virtude do erro ou dolo, salvo estipulação em, contrário. Mas no
caso de ter havido dolo, terá o comprador de escolher entre a indemnização dos
lucros cessantes pela celebração do contrato que veio a ser anulado e a dos
lucros cessantes pelo facto de não ser sanada a anulabilidade;
e)
Se
as circunstâncias mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente
adquirido os bens, mas por preço inferior, apenas lhe caberá o direito à
redução do preço, em harmonia com os defeitos da coisa, além da indemnização
que no caso couber.
O disposto no
art. 914º CC postula realmente um incumprimento. Não se pode dizer com
segurança o mesmo das pretensões indemnizatórias conferidas ao comprador ao
abrigo dos arts. 908º e 909º CC porque elas se restringem à área do interesse
contratual negativo. Todavia, basta aquela primeira asserção para obrigar à
reexplicação dogmática do instituto, porque, o erro e o cumprimento excluem-se
forçosamente. Havendo erro, o incumprimento do negócio, ainda que pela
reparação ou substituição da coisa, nunca satisfará o comprador porque é o
próprio contrato que se não apresenta como idóneo à satisfação do seu
interesse. Mas se aquela reparação ou substituição o servem realmente, então a
vontade do comprador abrangia de facto as qualidades, e o acordo negocial, a
ser pontualmente executado, adequa-se aos fins que lhe presidiram, pelo que o
problema só pode ser de incumprimento.
[1][1] A reserva de propriedade (art. 409º/ CC) é uma venda
condicional, em que a condição se restringe à transferência do domínio, reserva
que, no entanto, não pode ser feita sem limite de tempo, caso em que a
alienação seria nula. A reserva de propriedade e a venda a prestações não se
confundem. Aquela é compatível com a venda em que o pagamento diferido do prazo
se faça por uma só vez e a estipulação da prestação não obsta a uma eficácia
imediata.
[6][6] O
n.º 3 do art. 907º CC prevê um dever secundário que impende sobre o vendedor
quanto à obrigação de transmitir o direito livre de ónus ou encargos. Esse
dever existe também fora dos caos em que tenha havido obrigação de fazer
convalescer o contrato.
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