Armados da Concepção
Materialista da História, Marx e Engels a aplicaram ao conhecimento das
formações económico-sociais pré-capitalistas (sociedades primitivas, sociedades
escravistas, sociedades feudais) e, particularmente e com mais força, ao estudo
do modo de produção capitalista e da sociedade burguesa a ele correspondente.
Foi possível a Marx investigar a origem, a organização, a dinâmica, as
contradições, as crises e as possibilidades de superação da sociedade
capitalista.[1]
Assim como os homens
foram capazes de construir, em determinadas condições histórias, diversas
formas de sociedade, são também os demiurgos do conhecimento, pensamento,
idéias. As categorias ou conceitos devem expressar o movimento da realidade
concreta. Marx e Engels não toleravam os pensadores e correntes que
divinizavam, mistificavam, o capitalismo e o transformavam numa sociedade fora
da história, chegando a defender que a sociedade burguesa era o próprio “fim da
história”. Para Marx e Engels, tanto a sociedade capitalista quanto as
categorias que expressam as suas relações sociais são históricas, transitórias,
superáveis.
Em O
Capital, Marx tinha uma clara visão que a Economia Política, isto é, a que
vê na ordem capitalista a configuração definitiva e última da produção social,
só pode assumir carácter científico enquanto a luta de classes permaneça
latente ou se revele apenas em manifestações esporádicas. Vejamos o exemplo da
Inglaterra. Sua economia política clássica aparece no período em que a luta de
classes não estava desenvolvida. Ricardo, seu último grande representante,
toma, por fim, conscientemente, como ponto de partida de suas pesquisas, a
oposição ente os interesses de classe, entre o salário e o lucro, entre o lucro
e a renda da terra, considerando, ingenuamente, essa ocorrência uma lei perene
e natural da sociedade. Com isso, a ciência burguesa da economia atinge um
limite que não pode ultrapassar (2002:22-23).
Para que a relação chamada capital possa
existir é preciso, como diz Marx em O Capital, que duas espécies bem
diferentes de possuidores de mercadorias tenham de confrontar-se e entrar em
relação um com outro:
De um lado, o proprietário de dinheiro, de
meios de produção e de meios de subsistência, empenhado em aumentar a soma de
valores que possui, comprando a força de trabalho alheia; e, do outro, os
trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, portanto, de
trabalho. Trabalhadores livres em dois sentidos, porque não são parte directa
dos meios de produção, como os escravos e servos, e porque não são donos dos
meios de produção, como o camponês autónomo, estando assim livres e
desembaraçados deles. Estabelecidos esses dois pólos de mercado, ficam dadas as
condições básicas da produção capitalista. O sistema capitalista pressupõe a
dissociação entre os trabalhadores e a propriedade dos meios pelos quais
realizam o trabalho. Quando a produção capitalista se torna independente, não
se limita a manter essa dissociação, mas a reproduz em escala cada vez maior. O
processo que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo que retira
ao trabalhador a propriedade de seus meios de trabalho, um processo que
transforma em capital os meios sociais de subsistência e os de produção e
converte em assalariados os produtores directos. A chamada acumulação primitiva
é apenas o processo histórico que dissocia o trabalhador dos meios de produção
(2006, p. 828).
O capital, portanto, é uma relação
social, uma relação entre os capitalistas, de um lado, e os trabalhadores
assalariados, de outro. O objectivo central da sociedade capitalista é extração
da mais-valia, do trabalho excedente, por meio da exploração da força de
trabalho e da produção de mercadorias. Como Marx analisa, em O Capital,
a mercadoria é “A célula da sociedade burguesa é a forma mercadoria” (2002,
p.16). E acrescenta: “A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista
configura-se em imensa produção de mercadorias” (Idem: 57).
Ao contrário da Economia mercantil simples, presente nas
formações sociais pré-capitalistas, em que as trocas de produtos pelos
produtores direitos, como, por exemplo, os camponeses e artesãos, com o objectivo
de garantir a sua própria subsistência e da sua família (a fórmula da economia
mercantil simples é: M (mercadoria) – D (dinheiro) – M (mercadoria), a produção
capitalista é uma economia mercantil desenvolvida, que objectiva a produção de
mercadorias para a venda (mediação do dinheiro), para garantir o lucro e a
acumulação do capital (a fórmula da produção capitalista é: D (dinheiro) – M
(mercadoria) – D' (dinheiro).
Os produtos do trabalho humano constituem valor de uso,
isto é, um bem destinado a atender a uma determinada necessidade. No
capitalismo, porém, os produtos do trabalho e a própria força de trabalho
constituem mercadorias. Essa pode ser concebida sob um duplo aspecto: como
valor de uso e valor de troca. Como valor de uso se destina a atender a uma
determinada necessidade humana. Como valor de troca, objectiva ser
intercambiada por outras mercadorias (no capitalismo, como dissemos, as trocas
são, em regra, realizadas com a intermediação do dinheiro).
A concepção marxista tem como base a teoria do
valor-trabalho, elaborada em suas linhas iniciais pela Economia Política
clássica, em particular por Adam Smith (A riqueza das Nações) e David
Ricardo (Princípios da economia política e da tributação). Para essa
teoria, o trabalho é o fundamento da riqueza material, é a base do valor das
mercadorias. O marxismo assimilou e desenvolveu a teoria do valor-trabalho,
aplicando-a, de maneira consistente, à explicação do funcionamento do modo de
produção capitalista e do intercâmbio de mercadorias. Para Marx, o valor de
qualquer mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho socialmente
necessário para produzi-las, nas condições médias de produtividade do trabalho
humano e de desenvolvimento das forças produtivas. O preço da mercadoria é a
expressão em dinheiro do seu valor. Esse
é o centro de gravidade em torno do qual varia para cima ou para baixo o preço
das mercadorias.
Eis a explicação de Marx, contida em O Capital:
Como os
valores de troca das mercadorias não passam de funções sociais das mesmas, nada
tendo a ver com suas propriedades naturais, devemos, antes de mais nada,
perguntar: qual é a substância social comum a todas as mercadorias? É o
trabalho. Para produzir uma mercadoria, deve-se investir nela ou a ela
incorporar uma determinada quantidade de trabalho. E não simplesmente trabalho,
mas trabalho social. Aquele que produz um objecto para seu uso pessoal e directo,
para seu consumo, produz um produto, mas não uma mercadoria. Como produtor que
se mantém a si mesmo, nada tem a ver com a sociedade. Mas para produzir uma
mercadoria, não só é preciso um artigo que satisfaça uma necessidade social
qualquer, mas também o trabalho, nele incorporado, deverá representar uma parte
integrante da soma global de trabalho investido pela sociedade. Tem de estar
subordinado à divisão de trabalho dentro da sociedade. Ele nada é sem os demais
sectores do trabalho; por sua vez, ele é necessário para integrá-los (2002:99).
A força de trabalho, como se disse, é transformada no
capitalismo em mercadoria, vendida e comprada no mercado de trabalho. Como toda
mercadoria, o valor da força de trabalho corresponde à quantidade de trabalho
socialmente necessário para a sua produção e reprodução, ou seja, a quantidade
de itens necessários à sobrevivência do trabalhador e da sua família. O preço
da força de trabalho é a expressão em dinheiro do seu valor. Como todas as
mercadorias, a lei da oferta e da procura incide sobre a alta e a baixa dos
preços da mercadoria força de trabalho, que varia para cima ou para baixo do
seu valor.
No quadro da sociedade capitalista, a relação entre
capital e trabalho aparece como uma relação de igualdade. É como se as duas
partes estivessem numa situação de equivalência diante da lei e das normas
trabalhistas. O contrato de trabalho, como expressão das relações económicas
burguesas entre capital e trabalho, apresenta-se como um acordo de livre
vontade, em que ambas as partes, dispondo das mesmas condições, decidem as
regras que irão reger a sua relação no processo de trabalho. Entretanto, trata
de uma igualdade meramente formal, que, do ponto de vista ideológico, esconde
as relações reais de desigualdades existentes entre capitalistas e
trabalhadores assalariados.
No capitalismo, adverte Marx, o trabalhador, envolto em
relações de produção burguesas, trabalha sob o controle do capitalista, a quem
pertence seu trabalho. O capitalista cuida em que o trabalho se realize de
maneira apropriada e em que se apliquem adequadamente os meios de produção, não
se desperdiçando matéria-prima e poupando-se o instrumental de trabalho, de
modo que só se gaste deles o que for imprescindível à execução do trabalho.
(...) o produto é propriedade do capitalista, não do produtor imediato, o
trabalhador (2002:2018).
Uma vez realizado o contrato de trabalho, a força de
trabalho é posta pelo capitalista no processo de produção material, em contacto
com os meios de produção. O contrato de trabalho é o invólucro jurídico que
encobre o processo de exploração. Em geral, o contrato de trabalho estabelece
em média uma jornada de 8 horas diárias. Levando em conta as particularidades
da época dos fundadores do marxismo e a jornada de trabalho vigente, podemos,
com Marx, em Salário, Preço e Lucro, compreender como funciona o
mecanismo de exploração capitalista na esfera da produção no chão da fábrica:
Ao comprar a
força de trabalho do operário e ao pagar o seu valor, o capitalista adquire,
como qualquer outro comprador, o direito de consumir ou usar a mercadoria que
comprou. A força de trabalho de um homem é consumida, ou usada, fazendo-o
trabalhar, assim como se consome ou se usa uma máquina fazendo-a funcionar.
Portanto, ao comprar o valor diário, ou semanal, da força de trabalho do
operário, o capitalista adquire o direito de servir-se dela ou de fazê-la
funcionar durante todo o dia ou toda a semana. (...) Tomemos o exemplo do
tecelão. Para recompor diariamente a sua força de trabalho, esse operário
precisa reproduzir um valor diário de 3 xelins, o que faz com um trabalho
diário de 6 horas. Isso, porém, não lhe retira a capacidade de trabalhar 10, 12
ou mais horas diariamente. Mas, ao pagar o valor diário ou semanal da força de
trabalho do tecelão, o capitalista adquire o direito de usar essa força de
trabalho durante todo o dia ou toda a semana. Portanto, digamos que irá fazê-lo
trabalhar 12 horas diárias, ou seja, além das 6 horas necessárias para recompor
o seu salário, ou o valor de sua força de trabalho, terá de trabalhar outras 6
horas, a que chamarei “horas de sobre trabalho”, e esse sobre trabalho se
traduzirá em uma “mais-valia” e em um “sobre produto”. Se, por exemplo, nosso
tecelão, com o seu trabalho diário de 6 horas, acrescenta ao algodão um valor
de 3 xelins, valor que constitui um equivalente exacto de seu salário, em 12
horas acrescentará ao algodão um valor de 6 xelins e produzirá uma
“correspondente quantidade adicional de fio”. E, como vendeu sua força de
trabalho ao capitalista, todo o valor ou todo o produto por ele criado pertence
ao capitalista, que é dono, por um tempo determinado, de sua força de trabalho.
Portanto, desembolsando 3 xelins, o capitalista realizará o valor de 6 xelins,
pois pelo pagamento de 6 horas de trabalho recebeu em troca um valor relativo a
12 horas de trabalho. Ao se repetir, diariamente, tal operação, o capitalista
adiantará 3 xelins por dia e embolsará 6 xelins; desse montante, a metade
tornará a investir no pagamento de novos salários, enquanto a outra metade
formará a “mais-valia”, pela qual o capitalista não paga equivalente algum.
Esse tipo de troca entre o capital e o trabalho é que serve de base à produção
capitalista, ou ao sistema de trabalho assalariado e tem de conduzir, sem
cessar, à constante reprodução do operário como operário e do capitalista como
capitalista. (2006: 113-15).
Numa parte da jornada de trabalho (tempo de trabalho
necessário) o trabalhador produz o suficiente para fazer retornar ao
capitalista o que este lhe antecipou na forma de salário (preço da mercadoria
força de trabalho). Na parte seguinte da jornada de trabalho (tempo de trabalho
excedente) o trabalhador produz uma quantidade de valor, isto é, de riqueza,
apropriada sem contrapartida pelo capitalista. É exactamente esse fenómeno que
Marx denomina de mais-valia. Estava explicado o mecanismo da exploração
capitalista, a que o trabalhador está submetido na sociedade burguesa.
Da Concepção Materialista da História resultava como
consequência a ideia axial de que de que não há qualquer sociedade imutável,
insuperável, dada de uma vez para sempre ou imune às transformações sociais,
económicas, políticas e culturais. O capitalismo, como as demais formações
económico-sociais, ao longo da história da humanidade, teve uma origem, desenvolveu-se
e se encontra numa crise profunda. No caso da sociedade burguesa, as forças
produtivas avançaram numa escala jamais vista.
Marx e Engels, em Manifesto Comunista, comentou
esse aspecto da história do capitalismo:
A sociedade burguesa, com suas relações de produção e de troca, o regime
burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos
meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode
controlar os poderes infernais que invocou. Há dezenas de anos, a história da
indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças
produtivas modernas contra as modernas relações de produção, contra as relações
de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu domínio. Basta
mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada
vez mais a existência da sociedade burguesa. Cada crise, destrói regularmente
não só uma grande massa de produtos fabricados, mas também uma grande parte das
próprias forças produtivas já criadas (1998:41).
[1] PEREIRA, Francisco. Karl Marx e o Direito:
Elementos para uma crítica marxista do Direito. Salvador-BA: LEMARX, 2019:21 ss.
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